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Eutanásia: Porque não?

 

Nas últimas décadas, nas sociedades ocidentais, a problemática da eutanásia é um dos assuntos mais debatidos no campo da bioética, e ultimamente também pela sociedade civil. Talvez as questões relacionadas com o início e o final da vida humana sejam das mais permeáveis a influências ideológicas e político-partidárias, pelo que se torna necessária uma reflexão o mais isenta e esclarecida possível sobre este assunto delicado e complexo, que está agora na ordem do dia em Portugal.

 

O que é a eutanásia

A palavra eutanásia resulta da associação de dois vocábulos gregos - “eu” (bem, com bondade) e “thanatos” (morte), podendo ser traduzida literalmente por “boa morte”. No seu sentido etimológico original, representava uma morte natural, serena e sem sofrimento, não envolvendo a intervenção de outra pessoa. Pensa-se que a primeira utilização da palavra eutanásia com este significado se encontra em Suetónio, historiador romano, que escreve acerca da morte do imperador César Augusto, no século I da era cristã, que faleceu com 75 anos: “Coube-lhe em sorte ter um fim fácil, como sempre desejara. De facto, quase sempre que ouvia dizer que alguém tinha morrido sem qualquer sofrimento, formulava logo os votos para si e para os seus de uma semelhante euthanasia – pois era este o termo que costumava usar”. Trata-se do tipo de morte que certamente todos desejamos, tanto para nós próprios como para os outros.

A eutanásia era pois, originalmente, uma forma de morrer. Porém, a partir do final do século XIX, o significado do termo mudou radicalmente. Para o académico John Keown, do Kennedy Institute of Ethics, a eutanásia consiste na provocação deliberada e intencional da morte de uma pessoa, a seu pedido, executada por um profissional de saúde que acredita que tal ato irá ser benéfico para essa pessoa. Apesar de não existir uma definição universalmente aceite de eutanásia, parece ser consensual que é sempre uma morte antecipada, não natural, provocada pela administração de fármacos com efeitos letais.

 

O que não é eutanásia

Importa agora esclarecer o que a eutanásia não é, pois uma das razões que levam muitas pessoas a manifestarem uma opinião favorável à legalização da eutanásia é por desconhecerem o verdadeiro significado do termo e suas implicações.

Em primeiro lugar, é necessário sublinhar que a suspensão ou abstenção de tratamentos inúteis ou desproporcionados para o estado clínico do doente não constitui um ato de eutanásia. A morte natural é um acontecimento biológico que faz parte da condição humana. Não iniciar ou suspender tratamentos ineficazes ou de benefício duvidoso para o doente, evitando a chamada obstinação terapêutica, não só não é eutanásia como pode ser considerado boa prática médica. São exemplos de obstinação terapêutica uma intubação nasogástrica para alimentação de doentes em situação de morte iminente ou medidas de reanimação cardiorrespiratória em doentes com condições incuráveis e terminais conhecidas, o que muitas vezes leva a um prolongamento do processo de morrer e não beneficia a pessoa.

Também não é eutanásia a administração de medicamentos com uma finalidade terapêutica, como por exemplo a morfina, ainda que possam ocasionalmente encurtar a vida do doente. A utilização de medicamentos para tratar a dor intensa, bem como usar sedativos para aliviar sintomas não controlados de outra forma, pode também ser considerado boa prática clínica. O que não é lícito é deixar o doente sofrer se houver recursos disponíveis para aliviar o sofrimento.

Por último, não é eutanásia o direito que qualquer paciente consciente e lúcido tem de recusar qualquer tratamento médico ou cirúrgico, mesmo que seja considerado necessário para evitar a sua morte precoce, como por exemplo uma cirurgia, com intenção curativa, para remoção de um tumor maligno. Respeitar a vontade do doente que, de uma forma esclarecida, pede à equipa de saúde para suspender tratamentos ou que lhe sejam retirados meios artificiais de suporte vital, é também eticamente legítimo e tem suporte jurídico.

Os eufemismos “morte assistida” ou “morte digna”, tantas vezes utilizados pelos meios de comunicação para designar a eutanásia, não têm lugar num debate sério sobre o tema. A maioria das pessoas prefere certamente ter uma “morte assistida” ou uma “morte digna” do que morrer sozinha, longe do seu lar ou em sofrimento, sem que isso signifique que desejem ser mortas de uma forma direta e ativa pela intervenção de terceiros.

 

Argumentos a favor

Os motivos principais para um pedido de eutanásia ou suicídio assistido incluem a presença de dor e outros sintomas físicos (p. ex. vómitos, convulsões, agitação psicomotora) considerados insuportáveis pelo próprio; a ansiedade e problemas psicológicos ou psiquiátricos; o receio ou situação de perda de autonomia e dependência; o desejo de não ser uma sobrecarga ou fardo para a família ou cuidadores; ou o sentimento pessoal de que o projeto de vida está esgotado. Ao contrário dos sintomas físicos, que surgem sobretudo nos doentes terminais e oncológicos, este último motivo é referido por pessoas com doenças crónicas degenerativas do sistema nervoso central ou tetraplegia, que apesar das suas limitações físicas não são doentes terminais, mas representam os casos mais mediáticos de pedidos de ajuda para morrer.

Os dois principais argumentos apresentados a favor da eutanásia são o alívio da dor ou sofrimento e o respeito pela autonomia individual da pessoa, que nos últimos anos passou a ser o argumento central. Há um terceiro, em que se alegam motivos de natureza económica, que apesar de minoritário tem vindo a assumir maior expressão, sobretudo num contexto de crise económica e de contenção de custos com a saúde.

Os defensores da eutanásia ou do suicídio medicamente assistido defendem o direito de controlarem o momento, o lugar e as circunstâncias da sua morte. O filósofo alemão Nietzsche afirmava: “Deve-se morrer orgulhosamente quando já não é possível viver com orgulho”.  Vários estudos têm revelado que os pedidos de eutanásia raramente estão relacionados com a presença e intensidade da dor ou de outros sintomas físicos, mas sim com aspetos psicossociais, entre os quais o medo de se ser um fardo para os outros e estar dependente de terceiros, nomeadamente para cuidados básicos de alimentação, higiene e locomoção. 

 

Argumentos contra

Um dos argumentos mais antigos contra a prática da eutanásia fundamenta-se no princípio da sacralidade ou inviolabilidade da vida humana, de clara matriz judaico-cristã mas enunciado por outras religiões e mesmo por quem não professe nenhuma. Nesta perspetiva, é sempre errado matar vidas inocentes porque a vida humana tem valor e dignidade intrínsecos e estar vivo é considerado um bem, independentemente das circunstâncias. Este argumento traduz-se na proibição da morte intencional, mas isso não significa que seja requerido preservar-se a vida humana a todo o custo.

A proposta de legalização da eutanásia é apresentada como uma solução de último recurso, em circunstâncias excecionais, mas o exemplo de países como a Holanda ou a Bélgica, que permitem estas práticas, confirmam que o Estado não tem capacidade de regular a atuação dos médicos que as executam e de impedir que muitas pessoas sejam mortas contra a sua vontade ou sem terem formulado qualquer pedido nesse sentido. Na Holanda, mais de 1000 pessoas são mortas todos os anos, ao abrigo das leis da eutanásia, sem terem dado o seu consentimento. Na Holanda e na Bélgica, onde o número de casos de eutanásia tem vindo a aumentar exponencialmente, entre os quais por motivo de doença psiquiátrica, está-se a debater a possibilidade de alargar a eutanásia a todas as pessoas que manifestem esse desejo por estarem “cansados de viver”, mesmo que não sofram de doença grave ou incurável.

Por outro lado, a prática da eutanásia é incompatível com a missão primordial da medicina e enfermagem, que consiste em combater a doença, conservar a vida e aliviar o sofrimento, o que está em consonância com o Juramento Hipocrático e outros códigos de ética e deontologia. Tal como refere o Prof. Daniel Serrão, “a aceitação da eutanásia pela sociedade levaria à quebra de confiança que o doente tem no médico. Uma sociedade que despenaliza a eutanásia corre o risco de provocar uma enorme insegurança dos cidadãos face à atividade das equipas de saúde.” É o que já acontece nos países onde a eutanásia é legal, em que muitos idosos têm medo de recorrer aos serviços de saúde por poderem vir a ser mortos sem a sua autorização.

A Drª Cicely Saunders, cristã convicta, foi a pioneira da Medicina Paliativa, reconhecida como especialidade no Reino Unido desde 1987. Fundou, em 1967, a primeira unidade de cuidados paliativos da era moderna – o St. Christopher’s Hospice em Londres. Os Cuidados Paliativos, que podem ser prestados em regime de internamento ou no domicílio, valorizam a vida, mas encaram a morte como um processo normal. Não antecipam nem atrasam a morte intencionalmente. Proporcionam aos doentes o alívio da dor e de outros sintomas incómodos. Integram os aspetos psicológicos, sociais e espirituais dos cuidados, de forma que os pacientes possam encarar a morte de uma forma mais tranquila. Além disso, proporcionam apoio aos familiares e cuidadores durante a doença do paciente e durante o luto.

Tive a oportunidade de visitar várias unidades de cuidados paliativos, em Portugal e no Reino Unido, e pude observar por mim próprio que é possível proporcionar excelentes cuidados de saúde em doentes terminais, não com fins curativos mas tendo em vista a melhor qualidade de vida possível, apesar da doença. A melhor resposta dos serviços de saúde para os raríssimos pedidos de eutanásia ou suicídio assistido será a implementação de uma rede nacional de Cuidados Paliativos, preferencialmente domiciliários, que possa lidar de forma competente e adequada com a dor e o sofrimento, principalmente na fase final da vida.

 

O que diz a Bíblia

Em Génesis 1:26- 27 lemos que o ser humano foi criado à imagem de Deus, o que o dignifica e diferencia de todos os outros seres vivos. O sexto mandamento da lei de Deus é também claro ao determinar: “Não matarás” (Ex. 20:13). Ainda em 1.ª Coríntios 6:19-20, Paulo escreve, referindo-se aos cristãos, que somos propriedade de Deus, visto termos sido resgatados por elevado preço, através da morte sacrificial de Cristo: “Não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de Deus, e que não sois de vós mesmos?”.

A ideia de se provocar a morte, mesmo para aliviar o sofrimento, parece ter sido um conceito estranho e repulsivo para o povo de Israel, que, em obediência à vontade de Deus, sempre dedicou uma especial atenção às necessidades dos mais fracos e vulneráveis, como os órfãos e as viúvas. No primeiro capítulo do 2.º livro de Samuel (6-10) encontramos uma história singular. O rei Saul, ferido de morte numa batalha contra os filisteus, pede para ser morto por um jovem amalecita, que poucos dias depois procura o rei David, procurando ser recompensado pelo seu feito. Diz o amalecita a David: “[o rei Saul] pediu-me para me aproximar dele e para acabar de o matar, porque já tinha entrado em agonia, mas continuava vivo” (2 Samuel 1:9). O que o amalecita faz prontamente (ou diz que faz, porque há quem defenda que a sua descrição dos acontecimentos poderá ter sido inventada, para cair nas boas graças de David, sendo o relato verídico o que se encontra em 1 Sam. 31: 1-4 e 1 Cr. 10:1-4). No entanto, ao contrário do que esperava, não foi elogiado nem recompensado pelo seu ato de misericórdia, mas condenado à morte por ter ousado levantar a sua mão para matar o rei que Deus escolhera.

A Palavra de Deus, profundamente realista, não omite referências a ocasiões na vida de grandes homens de Deus como Moisés, Jó, David ou Elias que, em momentos de grande angústia e desespero, desejaram morrer (p. ex. 1 Reis 19:4). No entanto, em todas as ocasiões Deus veio em seu auxílio, providenciando solução para as suas necessidades.

O facto do próprio Deus ter encarnado em Jesus Cristo, a Sua morte sacrificial na cruz, apesar do intenso sofrimento, e a Sua ressurreição dos mortos são a resposta mais completa ao problema do mal e do sofrimento e um extraordinário sinal de esperança na vida eterna, em que não haverá mais “morte, nem luto, nem pranto, nem dor” (Ap. 21:4).

 

Dr. Jorge Cruz