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“Não incomodem a parteira”: o aborto como uma parábola para o suicídio assistido

Artigo de opinião
As opiniões expressas não refletem necessariamente as da Christian Medical Fellowship.

Original article: (clique aqui)

Jennie Pollock é a Chefe Adjunta de Políticas Públicas da Christian Medical Fellowship e escritora e editora freelance em part-time. Ela tem um mestrado em Filosofia e adora pensar, ler e escrever sobre os pressupostos que sustentam os nossos valores culturais.

A série atual “Call the Midwife” [Chamem a parteira] passa-se em 1966. Eliminamos a febre do Mundial em cerca de meio episódio e agora estamos nos concentrando noutras coisas no noticiário daquele ano. A mais significativa, do ponto de vista de uma parteira, foi o Projeto de Lei de Reforma do Aborto de David Steel, que estava na altura em discussão no Parlamento.

No episódio desta semana, Trixie está cheia de compaixão por uma mulher que se encontra grávida de um quinto filho enquanto vivia em condições miseráveis com um marido abusivo e desempregado. Sempre apaixonada e franca, Trixie aparece na rádio defendendo a nova lei contra um grupo de homens mais velhos arrogantes e condescendentes.

Se este projeto de lei for aprovado”, argumenta um, “então os médicos sentir-se-ão pressionados a usá-lo, e as comportas se abrirão.”

O projeto de lei não dá aos médicos o direito de determinar quais mulheres estão ou não nas melhores condições para terem filhos?” sugere outro.

Sim, o que acontece se a sociedade não aprovar um certo tipo de mulher, ou a forma como ela vive? Os médicos serão incentivados a interromper essas gestações?” pergunta o primeiro.

'”Não, claro que não!” Trixie explodiu: “Nenhum médico submeteria um paciente a um procedimento médico que envolvesse riscos, a menos que achasse necessário. Nenhum médico consideraria a interrupção da gravidez levianamente. Muitas vezes é o último recurso. Estas mudanças estão sendo propostas para permitir que os médicos usem a sua discrição profissional quando confrontados com mulheres em situação desesperada e para evitar que sejam castigados como criminosos. A maioria dos bebés é amado e desejado, mas há mulheres que se encontram em situações que são prejudiciais à sua saúde e à sua sanidade - elas simplesmente não conseguem lidar com isso. Elas estão a viver em condições sociais terríveis, sem esperança e sem dinheiro. Como é que isso pode ser benéfico para qualquer criança?

Então mudemos as condições”, um dos homens responde, “vamos dar-lhes melhor habitação, mais empregos, e permitir que criem os seus filhos em segurança”.

Por que é que não podemos fazer as duas coisas?” pergunta Trixie. “Tudo o que eu sei é o que eu vi - mulheres sangrando até a morte em quartos sujos, em becos. Mulheres desesperadas para evitar o estigma de um bebé não planeado. (…) Eu sei que é uma questão de consciência, e a minha consciência diz-me que este projeto de lei deve passar'.

A paixão e a compaixão de Trixie são convincentes, e as histórias que o programa contou realmente tocam o coração. Mas ocorreu-me que há muitos paralelos entre essa pressão a favor da legalização do aborto e aquela que vemos hoje a favor da legalização do suicídio assistido. Então, que lições podemos aprender?

  • As histórias de desespero não são a história completa;
  • Os médicos estão a decidir que tipo de vida vale a pena ser vivida;
  • “Fazer as duas coisas” não reduz a procura;
  • Os médicos são pressionados a usar as liberdades que lhes foram concedidas e as comportas foram abertas.
1) As histórias de desespero não são a história completa

A própria Trixie sabe que não são apenas as mulheres desesperadas que vivem em condições terríveis, no fim de suas forças, que procuram o aborto. Apenas alguns episódios antes, ela observou um aborto realizado numa clínica privada, numa mulher que tinha como pagar por tal serviço, por um médico que estava disposto a infringir a lei e dirigir um lucrativo negócio paralelo.

Parte da história era sobre igualdade; Trixie ficou indignada com o facto de mulheres ricas poderem pagar para fazer abortos ilegais com segurança em clínicas esterilizadas, enquanto as mulheres pobres eram forçadas a recorrer a medidas desesperadas. Essa é uma conversa que vale a pena ter. O suicídio assistido já está disponível para aqueles com os meios, as conexões e o know-how - o Dr. Henry Marsh disse à nação na BBC Radio 5 Live no início deste mês (gravação disponível até 14 de junho) que ele tem um “kit suicida” pronto para quando ele desejar usá-lo (o que é perfeitamente legal), e um “amigo médico” que está disposto a ajudar a acabar com as coisas se tal não correr como planeado (o que não é). Outros podem viajar para clínicas como a Dignitas para ter os seus desejos de morrer realizados. É correto que alguns setores da população tenham acesso a ajuda para acabar com as suas vidas, enquanto outros não têm?

Mas Trixie falha totalmente em mencionar esse aspeto no seu argumento. Talvez ela não queira quebrar o sigilo daquela clínica em que trabalhava, ou talvez simplesmente saiba que uma história de desespero comovente é mais convincente do que uma sobre igualdade. No entanto, o episódio teria mantido mais integridade se um dos personagens a tivesse desafiado neste ponto. “Não é verdade que não se trata apenas de algumas mulheres desesperadas procurando ajuda como último recurso? Não há muito mais mulheres que tirariam proveito disso se fosse legal?” A história nos dá a resposta, e não há razão para pensar que com o suicídio assistido seria diferente.

2) Os médicos estão a decidir que tipo de vida vale a pena viver

Os homens envolvidos na entrevista Call the Midwife temiam que os médicos discriminassem estilos de vida e níveis de pobreza e que as mulheres fossem consideradas "inadequadas" para serem mães. Tanto quanto eu sei, não há evidências no Reino Unido de que isso aconteça sistematicamente, embora as taxas de aborto aumentem constantemente de acordo com os Índices de Privação Múltipla (DMI) - o que significa que quanto mais carenciada uma mulher é, maior a probabilidade dela fazer um aborto - e as mulheres negras, que constituem apenas cerca de 3,3 por cento da população, representam 8 por cento dos abortos. Os médicos estão a pressionar essas mulheres a fazerem abortos? Esta é uma questão extremamente difícil e delicada, mas de onde quer que venha a pressão, parece que alguns grupos demográficos são mais propensos a abortar do que outros.

Uma coisa que sabemos, no entanto, é que os médicos e outras equipas médicas rotineiramente propõem abortos - muitas vezes várias vezes durante a gravidez - a mulheres cujos fetos foram diagnosticados com síndrome de Down e outras doenças compatíveis com a vida. “Recebemos proposta de interrupção da gravidez 15 vezes!”, uma mãe disse à BBC recentemente, “embora tenhamos deixado bem claro que não era uma opção para nós, mas eles realmente pareciam pressionar e realmente queriam que interrompêssemos a gravidez.”

Se as equipas médicas já estão decidindo que tipo de pessoa não deve ter a chance de viver neste contexto, por que esperaríamos que fosse diferente no final da vida? E podem outras circunstâncias da vida ser um factor que leva as pessoas a buscarem ajuda para morrer, como parece acontecer quando pretendem um aborto?

3) “Fazer as duas coisas” não reduz a procura

Na recente reunião inaugural do All-Party Parliamentary Group for Dying Well, que se opõe à legalização da eutanásia e suicídio assistido no Reino Unido, Andrew Mitchell (membro do parlamento) perguntou por que não podemos mudar a lei sobre morte assistida e investir mais em cuidados paliativos. Novamente, as estatísticas de aborto podem nos apontar para a resposta. Em 2019, houve 207 384 abortos na Inglaterra e no País de Gales, e tinham sido 23 641 em 1968. Nesse intervalo de tempo, os padrões de vida melhoraram consideravelmente. Ainda há pessoas vivendo em extrema pobreza, é claro, mas o tipo de miséria e desespero retratado em vastas áreas do leste de Londres em Call the Midwife é, felizmente, uma coisa do passado. As condições de vida melhoraram. As mulheres têm acesso a muito mais ajuda e apoio. No entanto, o aborto continua a aumentar e, de facto, tem aumentado acentuadamente desde 2016, embora a taxa de desemprego tenha caído continuamente desde 2013.

A melhoria das condições de vida parece fazer pouca diferença na taxa de abortos. O principal fator parece ser a normalização. Depois de atingir quase 160 000 em 1972, a taxa de abortos caiu para 129 673 em 1976 antes de aumentar para retomar o seu nível de mais de 160 000 em 1980, para nunca mais cair abaixo desse número. A partir do momento em que o aborto se tornou uma prática aceitável, os números permaneceram altos e, na maioria das vezes, não pararam de aumentar ano após ano.

Vamos garantir que melhoramos primeiro o acesso e as informações sobre cuidados paliativos - já que essas são as áreas de maior necessidade - e trabalhar para melhorar ainda mais a qualidade das que já estão disponíveis. Podemos ou reduzir a procura ou rendermo-nos a ela; tentar fazer as duas coisas simplesmente não funciona.

4) Os médicos são pressionados a usar as liberdades que lhes foram concedidas e as comportas foram abertas

Mais de 200 000 abortos por ano é uma avalanche, quaisquer que sejam os padrões utilizados. Evidências como as da investigação do “cliente misterioso” realizada no ano passado pela Christian Concern sugerem que prestadores de serviços de aborto como o British Pregancy Advisory Service (BPAS) estão habituados a aprovarem abortos por “qualquer razão que não seja o sexo do bebé”, simplesmente “anexando” às razões das mulheres o crirério legal que melhor lhe convém. O motivo mais frequentemente usado (98% das vezes) é a alínea C, que afirma:

“Que a gravidez NÃO excedeu as 24 semanas e que a continuação da gravidez envolveria risco maior, do que se a gravidez fosse interrompida, de lesões físicas ou problemas de saúde mental da mulher grávida”.

A pessoa do BPAS que atendeu a chamada na conversa referida no link acima parece ter decidido que “parece que emocionalmente não é o momento certo” para que a pessoa que ligou esteja grávida, pois isso constitui um prejuízo significativo para a saúde física ou mental da mulher. As comportas estão abertas.

Em termos de pressão sobre os médicos, as artimanhas do parlamento de Westminster em torno de dar ao Secretário da Irlanda do Norte novos direitos para forçar a Irlanda do Norte a começar a encomendar serviços de aborto certamente parecem um grande peso de pressão legislativa para realizar abortos, em vez de permitir que os médicos usem os seus critérios em casos extremos. Os repetidos ataques aos direitos de consciência dos médicos (o último sendo este da Associação Médica Mundial) e a pressão para “normalizar” o aborto constituem ainda mais pressão sobre as equipas médicas para realizar abortos ou garantir que as mulheres tenham informações suficientes para poder ter acesso a eles.

Os provedores de suicídio assistido não seguiriam o exemplo rapidamente, interpretando “Estou farto de cortar a relva” como cumprindo um critério legal relativo a sofrimento insuportável, por exemplo? Os médicos não sentiriam a pressão dos seus gestores financeiros para começar a encaminhar mais pessoas para uma morte rápida e fácil, em vez de um longo e caro tratamento de doenças e cuidados paliativos?

A paixão de Trixie pela legalização do aborto é retratada como algo totalmente positivo em Call the Midwife. Até mesmo as freiras tinham apenas alguns escrúpulos sobre a sua posição (e em particular sobre ela falar publicamente sobre isso). Ela é calorosa e compassiva e mudou as mentes de todos ao seu redor que um dia pensaram que cada vida, desde os primeiros momentos até ao último, era preciosa e merecia ser defendida. Precisamos de estar atentos a esses argumentos emotivos que abalam os corações, e olhar com firmeza para as verdades por detrás das emoções. A legalização do aborto deu-nos um modelo do que provavelmente veríamos se o suicídio assistido e/ou a eutanásia fossem legalizados. Vamos aprender as lições que a história nos deseja ensinar.

 

Tradução: Carla Lima
Revisão: Jorge Cruz e Lilian Calaim