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Como integrar os cuidados espirituais no currículo da medicina?

John Wenham, médico australiano,  destaca a falta de formação em cuidados espirituais nas escolas médicas e analisa formas de colmatar este défice.

(Original Article)

Os médicos e estudantes de medicina cristãos sabem que é muito importante prestar cuidados holísticos aos nossos doentes, atendendo às suas necessidades físicas, emocionais e espirituais. A Bíblia ensina que fomos criados à imagem de Deus (Génesis 1:26). Em Marcos 2:1-12, vemos que Jesus identificava uma variedade de necessidades físicas e espirituais naqueles que vinham ter com ele em busca de cura. Paulo escreve em 1 Tessalonicenses 5:23: “Que o próprio Deus de paz vos santifique em tudo. Que todo o vosso espírito, alma e corpo sejam conservados irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo.” Mas o que é ensinado nas escolas médicas do século XXI?

Existe muito pouca literatura sobre o ensino da espiritualidade na educação médica no meu país. Foram feitos trabalhos significativos nos EUA e na América do Sul, e alguns no Reino Unido, para desenvolver e demonstrar o valor deste elemento do cuidado holístico como parte integrante dos currículos médicos. O meu objetivo foi recolher exemplos de currículos médicos internacionais já estabelecidos em cuidados espirituais e utilizá-los para identificar os elementos centrais a incluir num programa capaz de preparar o médico moderno para esta tarefa essencial.

Uma conferência de consenso de 2009 definiu espiritualidade como “o aspeto da humanidade que se refere à forma como os indivíduos procuram e expressam significado e propósito e à forma como experimentam a sua ligação ao momento, a si próprios, aos outros, à natureza e ao significativo ou sagrado.” [1]

Apesar da aparente importância da espiritualidade, poucas escolas médicas australianas a incluem no currículo. Um inquérito feito por Trudie Rombola a 147 médicos de clínica geral na Austrália sobre competências de recolha da história espiritual em consultas holísticas identificou várias barreiras: tempo insuficiente, desconforto pessoal com o tema e preocupações dos médicos quanto a ultrapassar fronteiras em áreas espirituais que não são vistas como adequadas à sua profissão. A maioria dos participantes reconheceu a falta de conhecimento e competências, e por isso desejava mais formação, especialmente na recolha de história espiritual. Houve forte apoio à inclusão deste tema na educação médica australiana. [2]

A nossa revisão sistemática [3] de currículos de escolas médicas e programas de internato internacionais que abordam aspetos espirituais e religiosos dos cuidados aos doentes demonstra uma grande variedade de abordagens. No entanto, alguns ingredientes comuns foram identificados e devem ser considerados para inclusão num currículo concebido para o contexto educativo médico. Por exemplo, acompanhamento de capelão, treino em competências de comunicação, autorreflexão, análise de evidência e desenvolvimento de relações aparecem com frequência (Quadro 1).

O feedback dos estudantes sugere que acompanhar um capelão tem o mérito de ampliar a compreensão das necessidades espirituais dos doentes no contexto dos cuidados de saúde. Da mesma forma, participar em grupos de discussão liderados por uma equipa multidisciplinar, incluindo um capelão, permite que a realidade da medicina centrada na pessoa seja modelada de forma prática.

Os programas que incluem oportunidade de autorreflexão, quer através de escrita em diário quer de discussão em grupo, facilitam o desenvolvimento da autoconsciência espiritual. Isto é essencial para que médicos atuais e futuros sejam eficazes em reconhecer a necessidade deste aspeto ser considerado na prestação de cuidados. [4] As histórias espirituais não serão bem recolhidas se a competência não for ensinada de forma eficaz; por isso, esta deve ser uma componente central de qualquer currículo médico.

A melhor forma de melhorar competências na recolha da história espiritual e nos cuidados espirituais é através de tutores que sirvam de modelo para os estudantes, usando doentes simulados ou reais. Os estudantes podem depois praticar a tarefa e receber feedback dos tutores em tempo real. Vários autores descreveram o uso destes métodos e relataram que a experiência foi bem recebida. [5,6,7,8]

Christy Ledford e colegas utilizaram com sucesso o conceito de OSCE (Exame Clínico Objetivo Estruturado) formativo para ajudar estudantes de medicina a envolverem-se em conversas com doentes sobre espiritualidade e fé. [9] Tradicionalmente, os OSCEs são usados para avaliação somativa; neste caso, o formato foi adaptado para dar feedback de professores e colegas em contexto formativo, duas vezes por ano. O novo formato proporcionou observação direta e feedback sobre competências na relação médico-doente e na capacidade de explorar uma história espiritual.

Uma questão a considerar é: em que fase do ensino médico deve a recolha da história espiritual ser introduzida? Seis em cada dez programas abordaram-na nos anos clínicos três e quatro; esta parece ser a altura mais favorável, uma vez que os estudantes terão então ampla oportunidade para aplicar esta competência recém-aprendida com os doentes que observam. Os futuros médicos precisam de considerar a sua própria espiritualidade, pois isso não só melhorará a sua capacidade de criar ligação com os doentes a este nível, como também lhes proporcionará melhores ferramentas de autocuidado e reduzirá o risco de burnout. [10,11]

Um inquérito online a 260 estudantes de medicina finalistas na Austrália procurou compreender que tipo de exposição estes futuros médicos já tinham tido — quer observando, quer recolhendo uma história espiritual. A resposta foi cerca de dez por cento em ambos os casos. No entanto, 56% destes estudantes concordaram, ou concordaram fortemente, que os cuidados espirituais devem ser incluídos no currículo médico. [12]

Em resposta a estes resultados e incorporando a revisão da literatura internacional, desenvolvemos um currículo de meio dia, que está atualmente a ser testado em Nova Gales do Sul, Austrália. Estamos a usar OSCEs formativos e questionários reflexivos para avaliar o seu impacto. Assim que o estudo estiver concluído e publicado, será feito um pedido aos diretores de escolas médicas para apoiar a sua introdução nos respetivos currículos.


Tabela 1

OBJETIVOS – CONHECIMENTOS, ATITUDES E COMPETÊNCIAS

  • Cuidados centrados na pessoa – atitudes, conhecimentos e competências

  • Recolha da história espiritual

  • Acompanhamento de capelão

  • Competências de comunicação

  • Ensino OSCE

  • Discussões baseadas em casos

  • Reduzir barreiras aos cuidados espirituais

  • Construção de relações

  • Doentes simulados

  • Recolha de história com doentes reais

  • Autocuidado

  • Escrita reflexiva (diário)

  • Discussões em pequenos grupos

  • Compreensão dos principais sistemas de crenças mundiais

  • Jantares de espiritualidade

O Dr. John é médico de Medicina Geral em Broken Hill, Austrália, onde vive há doze anos. Formou-se em Manchester (Reino Unido) onde trabalhou durante 14 anos. É professor clínico sénior na Universidade de Sydney e encontra-se atualmente a realizar um doutoramento em educação médica e cuidados espirituais.

Imagem: Marcos Paulo Prado em Unsplash.com

Bibliografia:

  1. Puchalski C. et al. Improving the quality of spiritual care as a dimension of palliative care: The report of the consensus conference. Journal of Palliative Medicine. 2009;12(10):885-904
  2. Rombola T. Australian doctors’ perspectives on spiritual history-taking skills. Focus on Health Professional Education: A Multi-disciplinary Journal. 2019;20(1):69-85
  3. Wenham J, Best M, Kissane DW. Systematic review of medical education on spirituality. Internal Medicine Journal. 2021;51(11):1781-90
  4. Puchalski CM. The role of spirituality in health care. Proceedings (Baylor University Medical Center). 2001;14(4):352-7
  5. Bell D. et al. Wholeness of healing: An innovative student-selected component introducing United Kingdom medical students to the spiritual dimension in healthcare. Southern Medical Journal (Birmingham, Ala). 2010;103(12):1204-9
  6. Goncalves et al. Learning from listening: Helping healthcare students to understand spiritual assessment in clinical practice: Journal of Religion and Health. 2016;55(3):986-999
  7. Schonfeld T. et al. Incorporating spirituality into health sciences education. Journal of Religion and Health. 2016;55(1):85-96
  8. McGovern T. et al. A descriptive study of a spirituality curriculum for general psychiatry residents. Academic Psychiatry. 2017;41(4):471-6
  9. Ledford C. et al. Using a teaching OSCE to prompt learners to engage with patients who talk about religion and/or spirituality. Academic Medicine. 2014;89(1):60-5
  10. Brémault-Phillips S. et al. Integrating spirituality as a key component of patient care. Religions. 2015;6(2):476-98
  11. Doolittle B , Windish D. Correlation of burnout syndrome with specific coping strategies, behaviors, and spiritual attitudes among interns at Yale University, New Haven, USA. Journal of Educational Evaluation for Health Professions. 2015;12:41
  12. Wenham J, Best M, Kissane D. An Online Survey of Australian Medical Students’ Perspectives on Spiritual History Taking and Spiritual Care. Journal of Religion and Health. 2024;63(1):257-73